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Livre – Petrolina/ PE,
1980 − © Celestino Gomes.
− Óleo sobre Estopa (0.80 x 1.25 cm ).
O Corvo das Ideias Primordiais
Morreu há
alguns anos atrás, mas precisamente no dia 21 de Abril, o mais notável
Petrolinense que tive a honra de conhecer e ouvi-lo falar na sua mansidão, na
sua atormentada placidez, nos seus retoques de homem simples e dotado da
sabedoria celeste dos astros iluminados que brilham nas províncias como lírios de fogo, pois sua alma
encantadora já era maior do que os causos de sua notável rebeldia, contados as
várias bocas pelos que o julgavam como um louco ou um simples personagem
folclórico. Por causa dele perdi um grande amigo, certo dia ao me referir a
Celestino Gomes com a alcunha de ser ele o nosso Hemingwey do Sertão.
Há dias,
via-me triste e perturbado com o curso de sua enfermidade. Sua dor silenciosa e
de ressonância íntima me incomodava profundamente, pois na sua presença se
podia ver que era um homem forte e valente, que se resguardava e se fortalecia
dia-a-dia com o brilho do sol de sua terra e a presença do rio em sua vida,
frente aos vários desassossegos da existência. Hoje entendo que o excêntrico e
amável Celestino se eternizou ao dar vida a alma sertaneja na genialidade do
seu traço, que se alinhava à inquietação latente de sua triste existência de
homem peregrino e solitário.
No dia de sua
partida, percebi o quanto a cidade ficou mais feia, pobre e esquecida. E só uma
cidade sabe o que é perder a força de um grande olhar, na figura do seu maior
artista. Petrolina perdeu não só o olhar de um grande artista, que não se
cansou de retratá-la, mas a doçura de um ser que transcendeu as suas esquinas,
as suas praças, as suas ruas, o seu encanto. Seu desaparecimento nos deixou
também muito pobres. Era a enigmática figura de um homem que transparecia sua
tristeza nas suas ações e, nos deixava partindo para outra jornada de
espiritualidade.
Hoje sei que a
literatura Petrolinense perdeu uma de suas vozes mais libertárias. Sua
independência diante das convenções sociais incomodava e causava calafrio em
muitos figurões desta provinciana cidade de tropeiros, beradeiros e
aventureiros, porque era capaz de alçar vôos muito rápidos e altos, diante de
uma simples tomada de decisão em favor das causas dos mais desfavorecidos. Mas
Celestino Gomes partiu para o desconhecido com o reconhecimento público de uma
produção artística que só a posteridade saberá coroar com a grandeza plástica
das imagens do sertão que ele deixou, já que com indiferença foi tantas vezes
julgado e impiedosamente atacado.
Ao refletir
sobre a morte do poeta dos pincéis
celestiais, me veio a pergunta que tangencia a arte como espelho social de
uma época, e fui calado com a sublime reflexão de que a maior arma de um
coração bélico como o dele é possuir o sonho de grandeza de um sonhador que
sonha com o enriquecimento humano dos homens que o circundam. Agora posso
chamá-lo como dizia Miguel de Cervantes do seu cavaleiro da triste figura – Dom
Quixote. E foi esta figura universal que recobrou da minha ingênua pena a candura
de uma reflexão que fervilhava a minha alma naquela manhã do dia 22 de Abril ao
ver seu corpo sendo levado ao cemitério, diante de uma cidade pálida,
perdidamente triste e pobre.
Presumo ser
apropriado falar do velho Celestino, quando ele se predispôs a se identificar
retratando o sertão como sua pátria maior. Era o sertanejo que falava nele, que
se retratava diante do esquecimento de sua gente, que a ninguém deixaria
indiferente. Celestino não estava de forma alguma alheio à importância daqueles
com os quais se defrontava. No entanto, julgou-os a todos sem que jamais alguém
pudesse perceber qual seria a sua real intenção. Mesmo assim, sua obra falará
por si, ao deixar registrado como mapeamento de um tempo, o gratuito desfilar
de seus personagens nas imagens de sua querida cidade. Não se tratava
propriamente de caricaturas, mas de um gênero genial e peculiar que a poucos é
dado em doses de sabedoria.
Sua rebelde
figura, mais tarde, serviria como reminiscências de um caráter pessoal,
independente e maduro. Porém o que conta, o que pesa mesmo é o fabuloso
registro de sua época, de sua história e de sua aldeia, que o mesmo parece ter
arquivado e que agora voltará a público com a redobrada força de seus
mistérios.
Ao se deixar
retratar em dois livros, sua imponente literatura cresce e se enaltece com o
tempo na memória histórica do seu povo, pois passados alguns anos da publicação
dos mesmos e diante do seu imaginário pictórico, podemos imaginar o quanto – o
velho pintor do rio – já se conhecia e se auto-retratava com perfeição. Da
mesma forma, e com o seu característico vigor, Celestino perambulava pelas ruas
e se defrontava com a hostilidade dos olhares para com ele, mas conservava
sempre aquele mesmo ar entre espantado e severo, de quem adivinhava o que iriam
fazer com sua memória.
Seu sentido de
expressividade obrigava os altíssimos, orgulhosos e provincianos a se curvarem
diante dele, não por reverência, mas apenas para ouvi-lo melhor, em respeito a
sua sublime compreensão de vida e abandono, o que dava afinal o mesmo
resultado, devido à sabedoria que brotava dos seus vivos olhos azuis.
Neste pequeno
memorial de recordação, Celestino Gomes estará sempre revestido de luz e
simplicidade. Suas lembranças, mesmo que diminuída com o tempo, sempre me
resguardará a sua atenção quase sardônica. Mas estou falando apenas dessa
estranha personagem, que apresento como o homem histórico na sua última
investigação histórica, no empenho de atingir o senso obsesencial da sua substância, na matéria palpável de sua arte como
um misto lamentável de não ter tido a honra de conhecê-lo a fundo, na passível Petrolinidade desse nosso herói, que
sempre merecerá ser lembrado como o maior e o mais notável cidadão
Petrolinense.
Sua espécie é
rara, pois sem escrever um verso se tornou realmente um grande poeta, pois
retinha “uma candura que insiste em
dizer-nos que és feito do fogo, do rio e de sol”. Seus tons de cinza,
vermelho china, verde desbotado e azul cerúleo, nos lembram o extraordinário
pintor holandês em seu inquieto canibalismo, empunhando sua expressão
ameaçadora. E repito: sempre Celeste, quando ignorava o sentido simbólico de
suas ações e principalmente diante de sua expressiva nostalgia de menino afoito
e matreiro. Nisto sua figura se espelha a de um pequeno e sábio Corvo – sabendo
que essa ave é o símbolo das idéias primordiais – na sua proposital genialidade
diante da solidão que o revestia de celestes “arco-íris tingidos de tonalidades que nos acalentam e libertam”,
mas já vivendo num plano superior, como todas as aves solitárias.
Na noite do
falecimento total de sua existência, o céu se umedeceu e transbordou em lágrimas. Há muito
ninguém o via passeando no passadiço citadino; a beira do velho rio – sua
morada jeitosa, para onde queria ser levado para um último adeus. Era um pedido
longínquo. A sua sina de marinheiro, boêmio e poeta, havia deixado-o numa
ressaca interminável com os fatos do cotidiano, preferindo o isolamento sucinto
nas plagas da ilha do silêncio; na torre do seu castelo de sonhos, ilusões,
devaneios e lutas infindáveis para escapar da solidão.
O continente
só ficou sabendo de sua triste partida porque os ventos do norte trouxeram
mensagens da ilha, onde não mais os corcéis poderiam habitar por falta de
proteção. Era a partida de um mito, que por toda a vida logrou pelas águas da
existência na labuta contra o isolamento, chegando mesmo a ver caravelas onde
só havia o desolado vai e vem das ondas que o abrigavam na sua lida de
almirante. Seu último pedido foi que o enterrassem com sua magnífica espada
numa encosta da ilha; perto do rio – longe de todos – Era um grande poeta!
O próprio
dizia que no continente só possuía dois amigos: um Deputado da República para
as suas confissões infernais ao relembrarem a infância de outras épocas, e um
excêntrico poeta, para os bordejos matinais na boêmia gostosa do cais, na
companhia solitária dos seus silenciosos encontros com o fim da tarde. Na
verdade, nunca houve silêncio nestes encontros, pois ambos pensavam a vida e,
entre becos e esquinas, seus pensamentos acabavam estacionados na Rua Boa Esperança num velho cabaré
conhecido como Porto Bello. Era assim a sua vida no continente.
Sua existência
fora uma grande e tumultuosa lenda, gerada a partir de aflições monumentais e
inquietações latentes. Enterrou vidas e viveu o tempo suficiente para sofrer
sete solidões e se maldizer do que viu e viveu nestes longos anos de silêncio.
Era como se uma ordem secular partisse e deixasse o sentimento de ameaça tomar
conta da vida dos seus contemporâneos. Muitos diziam que o mesmo não fazia
parte deste universo, sendo uma transição que muitos queriam que partisse logo,
para fazer-se esquecer do que um dia fora dito de sua boca – profecias malditas
que afetaram os brios católicos da província mestiça com ares de nobreza, mas
com traquejos de uma sociedade sem tradição nas ideias.
Poucos foram
os que puderam contemplá-lo nestes últimos anos em que sua intransigente irreverência
celebrava conflitos e aparições ilusórias, mas que alimentavam sua efêmera
imaginação para o devaneio sombrio das enchentes do rio. Como se costumava
dizer - Era um mito. O lema de sua existência sempre fora a totalidade da vida
em sua total parcialidade; era um rebelde inquieto que sonhava com um mundo
liberto de tiranias. Neste instante se saúda sua memória, arrastando pesares
cerimoniosos sob o olhar crítico de uma espécie de pensador anarquista que
olhava a todos como se tivesse pagado para ver um espetáculo.
Ao morrer
deixou um inventário em dois livros, que desejava um dia ser lido como o
breviário de sua lucidez para afirmar sua condição de filósofo de um caos íntimo
numa Era Planetária, onde o ser não tem espaço diante do nada niilista da
especulação digital e da imensurável frieza nas relações humanas. Falarão no
futuro que as almas dos homens perdidos sobre um abismo e em contato com a
imensidade, ficam abandonadas a todos os excessos do heroísmo, da loucura ou do
horror. Evidentemente, que sua conduta jamais será submetida à prova de uma
horrenda força diabólica, visto que a realeza dos seus ideais será nitidamente
vista como algo que transcendeu o isolamento mais absoluto e fora capaz de
esperançar, viver e lutar pelas causas mais nobres que padecia a humanidade.
Sua elegância
tornava o funeral um tanto quanto sinistro; sua companheira de sempre – a
solidão – estava lá, ao lado de um cão em silêncio, contemplando uma nova
perspectiva sobre a alma do féretro – montavam guarda como negros corvos. Havia
uma confissão latente de que não gostaria de morrer com terrores suplementares,
mas tranquilamente, numa espécie de sonho sereno.
Parafraseando
o escritor inglês Josaph Conrad, certa aptidão para a morte não é coisa tão
rara, mas o que é raro é encontrar homens cujo coração, revestido de uma
impenetrável armadura, esteja pronto para conduzir até o fim uma batalha perdida.
Só os que lutam contra forças brutais conhecem bem esse desejo; homens que
entram na História pela porta da frente, enfrentando as cegas potências da
natureza ou a brutalidade estúpida das multidões...
Gênesis Naum de Farias
Sertão Profundo, Novembro de 2014.
Imprensa
Foucaultiana®
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