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A Casa do Patrimônio Serra da Capivara representa a incubadora de projetos interdisciplinares ligados a educação e preservação do patrimônio cultural, material e imaterial na Região Sudeste do Piauí, e esta ligada ao IPHAN em parceira com as universidades locais e as comunidades que vivem e produzem cultura no entorno do Parque Nacional Serra da Capivara.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Lançamento do Novo Livro do Poeta Gênesis Naum de Farias


A Casa das Sete Luas


Gênesis Naum de Farias


Nas Ruas do Velho Centro Comercial, por estes dias passeia a doce Salete, travestida no seu fino xaile, doado por um cliente caridoso, que amante da noite, tecia seu véu de ternura em galanteios eloqüentes e muito decote. Porém, na rua, os últimos ruídos da noite, cada vez mais distantes, armavam sua teia de ternura pelo tempo com a profusão dos espíritos de uma rebeldia romântica e muito desnuda, ao febril e evasivo tormento dos seus palácios. Era aquela travesti do antigo cabaré Tombadim do Mariano, bêbada e velha a lembrar saudosa, seus belos dias nas épocas dos tempos, vaidosa que era no romantismo das lembranças e das saudosas noites do sertão ribeirinho. Era ela, bela e agradável a vista, tal qual um belo anjo estampado no frontispício de um velho altar de igreja sorumbática.

Naquele bordel, mais conhecido como o Recreio da Lua Branca ou A Casa das Sete Luas, um dia cantou noitadas, viveu feliz e amou a vida como o último instante de sua jovialidade, mas entrou para a história, com os seus sofrimentos, porque amou um nobre, falido; uma espécie de dândi contumaz, bem generoso, que viajava sempre daqui pra li, sem cultivar da crítica citadina, certa estima, por isso sofreu os dissabores nos dias de frio e solidão.

Seu jeito calmo contagiava a boemia da cidade dos impossíveis e imperava sua majestade por onde passava. Era a sonhadora de um viver triste, mas sempre feliz em sua pequena timidez, preferia o beijo esperado por muito tempo, porque lhe saciava a alma e fazia-se valorizar no grande momento da ausente volúpia; de róseas face, de dourada tez e olhos de ressaca, negros e embaçados que, com sua pureza, diziam tudo e não dizia nada, mesmo sabendo que por onde passasse, sua linguagem e seu cheiro, sofria a censura dos olhares provincianos do povo desta terra, mas redimida e embelezada, oferecia-se em contemplações de abandono e má fé pelos que de longe sussurravam seu velho e bom passado.

Sua sensualidade poética idealizou-se nas mesas da luxúria, num parto imaginário, sem rumo nem reverso, transcrevendo a forma mais alegórica do cotidiano de uma velha prostituta, do largo mais famoso e badalado da Passagem de Joazeiro, com suas amigas voluptuosas e seus deslumbrados fregueses, sejam eles poetas ou homens ricos e donos do poder político. Na sua morada de perdição e sossego, o pecado parecia não existir, pois seu cheiro, sua classe e o seu glamour povoavam o sonho febril dos donatários destas terras e seus comércios. Ela era uma messalina, e o impressionante é como os homens apreciam essa gente.

O lugar era povoado de muita sutileza, sabendo que além de mulheres voluptuosas, seu largo recebia diariamente homens cultos, políticos e toda uma gama de santos envolvidos pelo ar do mistério e anonimato ali presente como ingredientes para boa conversa, traições, prevaricações e festas noturnas. Entretanto, apesar do glamour, aquelas mulheres representavam a verdadeira mazela produzida pelo progresso da sociedade, com seus preconceitos entranhados no recalque social. No entanto, aquele reduto boêmio abrigava metáforas vivas, pois retratava o pacto social, envelhecido nas insanas hostilidades da época.

A Casa das Sete Luas retratava todo o abandono sofrido pelas funcionárias voluptuosas e suas personagens clássicas advindas dos palácios de antigas cidades portuárias. Salete, órfão de pai e filha da cidadezinha mineira Santana dos Ferros, se perdeu de amor por um boêmio, desses da chamada geração perdida, que intrigava a todos com o seu excesso de pudor ao quebrar barreiras se apaixonar por aquelas musas a desnudar. A mesma chegou a receber presentes de homens ricos e até propostas de casamento, mas dizia que seu lugar era no Tombadim, porque figurava o insaciável desejo pelo prazer e a boa vida oferecida pelos moradores bem dignos desta província.

A própria Salete dizia que era uma figura carregada de significados simbólicos, devido à sua beleza, mas sabia que era amaldiçoada pelas famílias puritanas, porém amada noite adentro pelos grandes donatários destas cercanias, madrugadores em busca de prazeres nas camaradagens das noites do Tombadim. Hoje Salete definitivamente assombra, assusta e se deslumbra com a sua memória, pois troca encantos relembrando sua jovial e temperada época de cabaré em cabaré, a dançar despudoradamente no seu deleite desvelado e antipuritano; a sonhar, no seu portar magistral de pobrezas simples, em fragmentados lençóis, com os amores turvos de sua mocidade, com o ouvido atento aos boleros e as marchas de carnaval em lânguidos e dolências de desencontros, escondidos na humildade e revelado na timidez de cenas quase cinematográficas, através do mundo áspero e cruel do destino.

Sua vida marginal e apaixonada marca o tempo no rebento de sua máscara, pois disfarçada de mulher no espaço das luas brancas e dos amores distantes, passeia pelas ruas do nosso tempo como uma mulher bêbada e sofrida, mas saúda o seu tempo na casa dos afetos, como o ponto fixo de sua existência, que um dia sonhou violar com sua infância estelar no lugar mais mágico de sua mocidade, impressos na sua alma como o ponto cardial que nunca mais poderá voltar.

  
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FARIAS, Gênesis Naum de. Lavoura de Insônias. – São Paulo: Scortecci, 2015. p. 170-172.



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